Onde há tempo para os livros aquecerem as prateleiras, como na Pó dos Livros, que acabou de abrir. Ana Dias Ferreira e Bruno Horta foram espreitar esta novidade e mais livrarias que apostam na diferenciação.
Pó dos Livros
No número 89A da Avenida Marquês de Tomar ficava uma loja de cozinhas. Diz-se que fechou porque abriu o Ikea. No número 89A da Marquês Tomar fica agora a Pó dos Livros, a nova livraria de Jaime Bulhosa e Isabel Nogueira. Dez minutos de conversa com os proprietários e uma volta pelo espaço basta para nos convencer de que não, esta pequena livraria não deverá ter o mesmo fim. Independentemente da força das Fnacs e Bertrands – os impérios do mercado livreiro, os ‘Ikeas’ do mundo dos livros.
A Pó dos Livros ainda não tem pó, porque acabou de abrir. Tem fundo editorial, o que significa que livros editados há algum tempo se podem encontrar aqui. Tem um livreiro com mais de vinte anos de experiência, Carlos Loureiro (ouvimos alguém tratá-lo por “senhor Carlos”). Tem um ritmo e uma solenidade de biblioteca mas uma apresentação moderna, com um pequeno café para quem quiser uma bica no meio de livros, um sofá no andar de baixo para folhear algum título com mais vagar, e uns pufes coloridos no canto dos livros infantis. O chão é preto, as mesas são pretas, as estantes são pretas, mas o espaço não tem um ar sombrio ou triste. É como aquele papel higiénico da Renova – o preto dá-lhe um toque sofisticado, moderno e com requinte.
O objectivo, conta Jaime Bulhosa, ex-sócio das cadeias de livrarias Bulhosa e com bastante experiência no meio, foi “misturar o que as livrarias tradicionais têm de bom e o que as livrarias hoje em dia têm de ter: um espaço agradável, onde as pessoas possam estar à vontade, aliado a uma oferta de qualidade, a livreiros com experiência e fundo de catálogo”.
Num mundo em que a cultura se vende em megastores, em que há gigantes que sabem bem o que fazem (e fazem-no bem), como a Fnac, e em que se estima que dois terços dos livros se vendam nas grandes cadeias, “a estratégia das livrarias independentes que se querem impor passa obrigatoriamente por apostar na diferenciação da oferta e do serviço”. Diferenciação, diferenciação, diferenciação, é a palavra de ordem de Jaime Bulhosa. “É a única safa.”
Desacelerar para um ritmo de passeio
Primeiro, começa-se pelo serviço, que num espaço mais pequeno e quase de bairro tem de ser personalizado e cuidado. Há um segredo que Jaime Bulhosa aprendeu precisamente na Bulhosa: quem vem e gosta, volta. “Dez a 15% dos clientes fazem 75% da facturação. São poucos a comprar muito e muitos a comprar pouco.”
Depois, continua-se na oferta, diversificada: no piso térreo, o lugar nobre, literatura lusófona e traduzida, importação, História de Portugal, ciências sociais e humanas – uma área de grande aposta, uma vez que a livraria se encontra a cinco minutos a pé da Universidade Nova – política, poesia e teatro (em estantes e pequenas gavetas ordenadas de A a Z), BD, artes plásticas, fotografia, design, biografias e memórias. No piso de baixo, os livros técnicos: medicina, direito, economia, psicologia, auto-ajuda, gestão, e o infanto-juvenil.
“Hoje em dia, com a concentração do mercado livreiro, o que acontece é que, embora a oferta pareça maior, é menor, porque há pouca diversidade. Há muita coisa, mas é quase tudo o mesmo”, diz Jaime Bulhosa. “Aqui, quisemos criar uma livraria diversificada, não em quantidade mas em qualidade, juntando simultaneamente clássicos e novidades, livros portugueses e importados.” Isto é comprovado quando os olhos se detêm em livros muito diferentes: o último romance de António Lobo Antunes, Daniel Blaufuks e o seu Sob Céus Estranhos, os diários de Alastair Campbell – The Blair Years (ainda só disponível na versão original em inglês), ou algumas raridades, como os clássicos de Camilo Castelo Branco na edição Lello & Irmão, as Obras Completas de Gil Vicente numa colecção em capa dura da Imprensa Nacional Casa da Moeda, ou os livros de poesia da &Etc.
Carlos Loureiro já sabe onde ir buscar cada um deles. E o tempo aqui corre mesmo mais devagar. Nos últimos números apresentados pelo Congresso de Editores Portugueses, falou-se em 14 mil livros editados em Portugal, por ano. Um número exagerado para a nossa realidade, no entender de Jaime Bulhosa, que não permite aos livros aquecerem as prateleiras nem ao leitor encontrar o que precisa, se a edição já tiver mais de seis meses. Na Pó dos Livros, a ideia é desacelerar, aí como quem muda da quinta mudança para uma terceira, e sai da Fórmula 1 para o ritmo de passeio. Até que os livros ganhem pó. Mas não demasiado, para não acabar como a defunta loja de cozinhas. Ana Dias Ferreira Av Marquês de Tomar, 89ª
Livraria Letra Livre
Eduardo Sousa tem 50 anos, mas perante os livros ainda é capaz de se portar como uma criança. O brinquedo preferido é por agora a primeira edição de A Mensagem, de Fernando Pessoa, de 1934. Tira o pequeno livro de uma caixa de cartão e mostra-o, sem deixar mais ninguém tocar-lhe. Está em perfeito estado de conservação, sem manchas ou páginas dobradas. É tão raro que quem o quiser terá de gastar “vários milhares de euros”, informa Eduardo Sousa. Quantos, ao certo, prefere não dizer. É a obra mais cara da livraria Letra Livre. Algumas coisas dos poetas Mário Cesariny e Herberto Helder, que também ali existem, atingem preços cada vez mais altos, mas nunca nada que se compare a Pessoa.
A Letra Livre abriu há pouco mais de um ano. E não é propriamente uma loja alfarrabista. Vende usados, sim, mas também tem novidades. Não as do momento, claro. Eduardo Sousa e os seus dois sócios (todos antigos sócios e funcionários da extinta Ler Devagar da Rua de São Boaventura) não vão nisso. “Temos uma visão sobre o livro e sobre a cultura que tenta não estar de acordo com o espírito do tempo, que é o da venda maciça, do bestseller, da literatura light”, explica. O critério deles é outro.
“Vendemos aquilo que achamos importante do ponto de vista cultural, aquilo de que gostamos e o que não vemos à venda noutros lugares”. Do catálogo das pequenas editoras (Antígona, Frenesi, &etc, Fenda, entre outras), têm quase tudo, mesmo os títulos considerados esgotados. “Uns porque comprei em grande quantidade às editoras, outros porque faço compras de usados a particulares”. Quem quiser obras sobre o 25 de Abril, Lisboa, África ou Brasil também encontra. Poesia portuguesa actual há aos montes.
O facto de livros como a autobiografia de Aquilino Ribeiro ou a História do Movimento Operário e das Ideias Socialistas em Portugal, de Carlos da Fonseca, não se encontrarem hoje em quase lado nenhum, é incompreensível para Eduardo Sousa. “As grandes cadeias, como a Fnac, a Bertrand e a Asa, só querem vender depressa e em quantidade. Obedecem a um lógica de alta rotatividade e esquecem-se de que este negócio também exige compreensão e paciência”. Qualquer dia, vaticina Eduardo Sousa, “vamos ficar limitados a meia dúzia de títulos que explodem e amanhã ninguém sabe o que são.”
Apesar do discurso do proprietário, esta não é uma livraria com contornos políticos. “Quem me conhece sabe que sou libertário, mas isto aqui é uma loja. Não uso rótulos, nem emblemas. Sou fundamentalmente livreiro”, esclarece. Os seus principais clientes são coleccionadores, investigadores, estudantes e professores (o Liceu Passos Manuel fica próximo). Tem arranjado muitos clientes do interior do país através da página na internet, que funciona como loja virtual.
Na porta ao lado, fica o armazém e algumas estantes que não couberam na loja. De vez em quando, acontecem aí tertúlias e lançamentos. Ambos os espaços são pequenos, mas a oferta é tal que quem gosta mesmo de livros vai precisar de tirar vários dias para conseguir espreitar tudo.
Bruno Horta
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